segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O mundo da vida

O MUNDO DA VIDA.



Pare para pensar: o que une todas as pessoas do mundo? Em nossa pergunta não está contido um chamado para a fraternidade, embora essa seja importante, mas a vontade de entender o que existe de realidade igual para tantas pessoas, culturas e conhecimentos diferentes.

O que existe de inegável e fundamental em qualquer discussão são as pessoas reais que estão se comunicando. Porque são de carne e osso, e eu as vejo e ouço, penso serem mais reais ainda que quaisquer argumentos e provas objetivas a que uma ou outra esteja se referindo na conversa. Além das pessoas, outra parte importante da realidade são os problemas pessoais que cada pessoa tem. Muitas e variadas pessoas e problemas reais formam a realidade do mundo da vida.

Ainda que o conhecimento seja feito para resolver os problemas, ele não resolve nada sozinho, alguma pessoa precisa aplicá-lo (bem). E o mundo da vida é a realidade geral de todas as pessoas que vivem neste planeta, com a convivência de mundos muito diferentes, todos em inconstante mudança. Não é porque o homem perambula sobre o mundo que podemos achar que ele é independente. É do mundo que tira se alimento, abrigo e as relações afetivas, é no mundo que se abriga e é às mudanças do mundo – sejam físicas, sejam de perspectiva – que a pessoa responde.

Quanto maior é o conhecimento disponível e mais fácil nosso acesso a ele, fica mais difícil escolher por onde começamos. E se começamos a fazer algo pelo primeiro lugar que é possível, cada vez começamos por um lugar diferente, e daqui a pouco nem sabemos bem para onde estamos indo, o porquê de eu querer alcançar aquele meu objetivo. Não faltam tentativas humanas de superar esse obstáculo, e as inúmeras histórias sobre robôs contém sempre um pouco esse problema.



Em 1950 uma fundação americana patrocinou uma avançada experiência científica de desenvolvimento do conhecimento neutro e objetivo. O método consistia em isolar da sociedade de sua época um indivíduo dotado de poderosa memória, obstinada concentração e raciocínio cartesiano, confinando-o a uma enorme biblioteca, que ia sendo alimentada com novas publicações cientificamente relevantes e libertá-lo 10 anos depois para que pudesse observar alguém que poderia levar uma vida pessoal sem idéias subjetivistas e se comportar da mesma forma objetiva que um profissional competente em sua atividade.

Bibliotecários, psicólogos, matemáticos e uma infinidade de cientistas acompanharam e administraram o projeto. Em 24 de dezembro de 1960, Bóris Ruttendor renasceu para a vida prática e comum do cotidiano ao encerrar seu longo período de vivência e aprendizado exclusivo de conhecimento objetivo, não contingencial e não subjetivo.

Eram as seguintes questões que os cientistas da SIG-Fundation esperavam que o comportamento de Bóris respondesse: a) das diversas ciências que aprendeu, a qual Bóris daria uso prioritário? b) quando houvesse contradição entre diversas disciplinas como Bóris faria para superá-la? c) Como Bóris iria organizar a sua vida a partir dos inúmeros conhecimentos que possuía?

Enfim, o problema geral era: como o conhecimento científico objetivo seria usado pela pessoa de carne e osso ao enfrentar problemas reais no mundo da vida. E ainda, entre os incontáveis conhecimentos humanos existentes e pertinentes (sociologia, economia, direito, psicologia, educação, matemática, física, história, filosofia, semiologia, medicina etc.) como estabelecer o fundamento central de análise e funcionamento da aplicação desse conhecimento?

Quando Bóris saiu à rua, os cientistas estavam tomados por um nervosismo ansioso em relação à maravilha que Bóris prometia realizar. Alguns gritavam empolgados palavrões que expressavam a desforra em relação às pessoas que criticavam o projeto. Iam deixá-lo diretamente no centro de pesquisas para trabalhar entre cientistas que desconheciam o projeto, mas a diretriz do comportamento comum no dia-a-dia os fez optar por deixá-lo ir a pé , por algumas quadras, para agregar dados estatísticos de dispersão.

Logo na segunda quadra Bóris se deteve ante o inexplicável cheiro que vinha de uma banca de cachorro-quente. Para ele que passara um longo período comendo uma equilibrada ração nutricional na qual conseguira identificar o logaritmo que usavam para variá-la, aquele aroma era ao mesmo tempo agressivo e tentador.

Assim, a primeira questão que se apresentou a Bóris era a se deveria ou não comer aquela exótica comida sobre a qual derramavam molhos coloridos. Imediatamente seus conhecimentos se fizeram presentes e lembrou que historicamente o hot-dog era originário da cidade de Coburg, o açougueiro alemão Johann Georghehner, no final do século 17 e embora possa ter mais de uma centena de variações. Nutricionalmente calculou que aquela porção tinha 242 calorias, 14,5 g de gordura, 44mg de colesterol, 670 mg de sódio, 10,4 g de proteína e 13% da necessidade diária de ferro de um adulto saudável.

Já de acordo com a culinária moderna sua concepção rudimentar era compensada pelos contrapontos de doce, salgado e crocante. Nem o cálculo econômico era simples porque o preço menor era apenas o custo unitário, devendo os benefícios nutricionais e de tempo de consumo serem comparados com outros opções num autêntico exame de custo de oportunidade. Bóris, para simplificar utilizou os seguintes dados: opção a, 1 USS, 8% de impacto nutricional e 3 min de duração; opção b, 10 USS, 29% de impacto nutricional e 15 min de consumo e opção c, 15 U$$, 37% nutricional e 30 min de ocupação.

Agregou o fato de que não poderia escovar os dentes naquela tarde e calculou o impacto odontológico daqueles ingredientes em sua dentição; e das ciências securitárias somou o risco de permanecer numa esquina de trânsito intenso e nervoso com alta incidência de acidentes. Vemos hoje que, dado o fato de que Bóris não tinha a velocidade de processamento de um Google, foi absolutamente natural que esse processo o fosse atrasando de seu objetivo primordial, aliás, isso mesmo começava a entrar no cálculo... enquanto isso os cientistas nada podiam fazer, porque a intervenção era proibida.

Não fecharam 3 horas de considerações objetivas frente a banquinha de cachorro-quente, mas a fome de Bóris estava a cavar um buraco (subjetivamente falando) em seu estômago e a excitação perante o cheiroso lanche foi aumentando pela observação – ciumenta e reprovadora – das pessoas que simplesmente chegavam, pediam e comiam o lanche. A consideração reprovadora desse comportamento irracional, também começava a tomar parte de sua memória operacional disponível.

Ocorria todavia que cada conhecimento disciplinar dava-lhe uma resposta inicial diferente: historicamente as comidas mais interessantes de serem consumidas seriam por exemplo uma dentre aquelas 750 classificadas como em risco de extinção, como o Aratu (moqueca de caranguejo vermelho) ou mesmo uma reforçada vitamina com guaraná nativo Sateré-Mawé. Quanto aos cálculos nutricionais, os resultados das diversas comidas eram os mais diferentes e as variações acompanhavam inclusive as diferentes lanchonetes (sobre as quais ele não tinha dados atualizados) e eram pesadamente incrementadas com as diversas possibilidades de acompanhamentos.

Havia ainda a necessidade de interpelar insistentemente o vendedor de lanches para que ele lhe fornecesse os aspectos específicos que não podiam ser identificados a olho-nu, mas nem 15 minutos se passaram e Bóris já não contava mais com a boa vontade do vendedor para o diálogo.

Vendo-se impossibilitado de continuar, extasiado pela fome e tendo variados exponencialmente outros fatores envolvidos na decisão, enquanto essa mesma era processada, Bóris esticou o dinheiro em direção ao vendedor que, parecendo ter pressentido o ápice, entregou-lhe imediatamente um modelo bastante completo, ao qual Bóris lançou-se como um animal, mordendo, lambendo e chupando molhos e condimentos.

Lá no observatório do projeto gritava de exultação, pois foram 5 horas da, sem dúvida, compra mais bem feita e racional de um cachorro-quente da qual se tenha notícia na civilização cristã. Estavam certos, os cientistas, de que Bóris ainda iria quebrar muitos recordes. Anotaram ali mesmo em sua tábua oficial de resultados: uma pessoa de carne e osso, quando precisa se alimentar não dá prioridade a nenhum conhecimento disciplinar e utiliza a cada um como uma informação relativa (embora essa informação tenha caráter absoluto dentro da própria disciplina de conhecimento).

Observaram ainda que, por diversas razões, como a própria fome, a escolha não é perfeitamente racional e é determinada por outros fatores em conjunto. Reconheceram ainda que, se havia um ideal perfeito de objetividade decisória, ele deveria estar, para o caso da compra de um cachorro-quente, para baixo do período de 5 horas de análise.

Bóris retomou o caminhando cantarolando de felicidade e estalando os beiços, e logo a frente em seu caminho para o centro de pesquisas , entrou em uma rua deserta e logo viu um adolescente pichando a parede de uma casa. Esse infrator, ao vê-lo saiu correndo, tentando, sem sucesso, esconder seu rosto. Bóris pensou no que deveria fazer. Desta vez, bem alimentado e ciente de sua recente experiência, encostou-se na parede para pensar.

Para o direito moderno e positivo do país, tratava-se de um crime, uma fato típico, ilícito e punível, mas sociologicamente era uma manifestação cultural civilizada... e passou-se mais um tempo questionando-se sobre o que fazer, a ponto de que o registro de seus pensamentos facilmente construiria uma tese de doutorado sobre o que fazer quando ver um adolescente pichando um muro. Todavia, embora já tivesse anoitecido e Bóris necessitasse voltar para casa, ao contrário das pessoas comuns, recusou-se a interromper suas consideração com uma conclusão alcançada pelo cansaço. Como dizia ele, um cálculo pela metade não é uma verdade razoavelmente aceitável. Mas por outro lado a contradição entre aquele conhecimentos não se resolvera nem se resolverão tão cedo.

Os cientistas registraram. O comportamento de Bóris não corresponde à uma omissão comum pois que é baseado em sólido conhecimento analítico. Mas é inegável, pairava no ar a sensação de que as necessidades, de segurança, de abrigo, de subsistência da pessoa real, têm importante influência no comportamento da pessoa real, ainda que essa “tenha a razão objetiva a seu favor”, e que não havia quantidade suficiente de razão que, por sua própria massa crítica precipitasse uma decisão e sempre havia mais a considerar e sempre existiam outros fatores determinantes da decisão pessoal.

Bóris viu-se de repente enfrentando um problema que os livros que havia lido não enfrentavam: cada ciência, em seu campo de atuação, em sua dimensão disciplinar de realidade, estabelecera inúmeras verdades e conhecimentos objetivos, mas não havia nenhuma delas que tivesse agrupado, relacionado e superado as contradições que natural e inevitavelmente surgiam entre cada uma delas, para se possibilitar decisões práticas no dia-a-dia; logo sobrava todo esse trabalho, que não era pouco tendo em vista a quantidade de conhecimento produzido e disponível, à pessoa de carne e osso.

Ou seja, a escolha entre verdades paralelas e conflitantes que se mostravam, cada uma, verdades científicas e surgiam a cada novo problema enfrentado no mundo e que ainda deveria considerar a constante atualização perceptiva das circunstâncias contingentes dos dados objetivos disciplinares que deveriam ser analisados. Percebeu Bóris que era ela, pessoa concreta, e não somente o seu cérebro racional, o centro de todo o conhecimento que ele possuía.

Lembrando-se do episódio do cachorro-quente Bóris concluiu que os mesmos conhecimentos que ele possuía iguais às pessoas comuns, não necessariamente eram usados da mesma forma pelos indivíduos. O uso pessoal do conhecimento objetivo varia, por isso “pessoal”, conforme cada pessoa em dado espaço e tempo.

Assim o fundamento operacional central do conhecimento objetivo não eram as suas regras internas de produção mas sim a ação daquela pessoa que tinha de: a) memorizar o conhecimento objetivo; b) perceber os dados da realidade; c) interpretá-los; d) relembrar os diversos conhecimentos especificamente aplicáveis ao caso; e) relembrar as experiências pertinentes obtidas; f) escolher as possibilidades mais benéficas e menos arriscadas; g) fazer uma síntese praticável entre conhecimentos como: religião e ciência, direito e economia, medicina e psicologia e assim por diante.



A forma pela qual agimos sempre começa pelo mesmo lugar: Em todo lugar onde há sociedade, todos os atos, produtos, tarefas, idéias e demais existências tem como fundamento e finalidade principal, as pessoas reais, cada uma delas e, por consequência, o seu conjunto.

Mesmo que eu diga que a pessoa é o fundamento, facilmente bate um vento metafísico e nos põe a perguntar: qual pessoa: a criatura/filho de Deus? O organismo fisiológico cada vez mais revelado pela ciência? A identidade de cidadania que o Poder Público e a Lei atribuem a cada uma? Não. Partimos das pessoas de carne e osso que estão vivas e são ali mesmo, cada uma, num lugar e tempo determinados; pois, embora elas possam se projetar para longe, pela imaginação, pelos meios tecnológicos, nenhuma pode negar que se encontra, cada qual, em seu 'aqui' e 'agora'.

Simplificadamente – e é o suficiente para a pessoa concreta – existem três tipos de lugares no espaço: aqui, ali e lá. O aqui é onde estou, onde estiver é 'aqui', é o lugar conhecido, acessível, percebido, ocupado, passível de ser construído por minhas mãos e razão. Já o 'lá' é o oposto, é um lugar longe de onde estou, de onde alcanço, nem o vejo, nem o sinto, e também não o posso acessar ou nele intervir1. Por fim o 'ali' é um lugar intermediário. Não é aqui onde estou e não é lá onde não alcanço, é um lugar acessível, embora não esteja ocupado agora, é um lugar que posso perceber, sentir e nele agir, embora não esteja fazendo isso agora.

Para além da compreensão do espaço mas relacionado e talvez baseada nessa distinção do aqui, ali e lá, está um dos eixos centrais desse trabalho: a distinção da realidade em três: presente (aquilo que está presente), (aquilo que está)ausente e o presente-ausente, que não se reduz a nenhuma das duas realidades, mas as carrega paradoxalmente em si, como a representação de algo, que não está ali, em si, mas tampouco deixa de estar presente “de uma certa forma”.

O 'aqui, agora' é a realidade da pessoa concreta. O 'lá' é o desconhecido, inacessível para nossa razão, já que o acesso humano físico, pelo corpo e pela percepção, já chega aos confins do universo. O 'ali' é pura possibilidade. Entre o evidente aqui e agora que é inegável, e o desconhecido, inacessível e obscuro 'lá', está aquilo que pode ser alcançado pelo homem.

Já que é correto falar do espaço-tempo como uma única realidade, podemos dizer 'aqui-agora', 'lá-depois' (e 'ali-durante'?). Essas idéias podem ser utilizadas para expandir a compreensão inicial de qualquer outro assunto através das palavras 'imediato' e 'mediato'. Exemplo: quando compro um ingresso para ver um filme de comédia, meu objetivo imediato é ver o filme e ele será frustrado se eu não conseguir vê-lo (digamos que o projetor quebre).

Todavia, ainda que eu alcance meu objetivo imediato e veja o filme, não quer dizer que eu vá alcançar meu objetivo mediato: às vezes um filme dito de comédia parece mais um drama e o meu objetivo mediato ficará frustrado. Já se eu digo que o meu objetivo imediato é ver uma comédia, possivelmente o meu objetivo mediato é rir, mas ainda que alcance o primeiro, posso não alcançar o segundo, ainda que se trate de uma boa comédia, pois posso 'não estar no humor'. O que ocorre é que sempre presumimos, pelo nosso conhecimento, experiência e desejo, que na realização do objetivo imediato estaremos automaticamente realizando os objetivos/desejos mediatos.

Se com os atos que realizo não tenho alcançado os objetivos que tinha é porque talvez a ligação entre isso que sei e domino, o 'aqui-agora', e o que não sei e não consigo alcançar diretamente, o 'lá-depois', não está funcionando como eu esperava. Se a soma dessas realidades forma o mundo da vida em que vivo, essa é a hora em que eu me pergunto se a visão de mundo que eu tenho corresponde mesmo à realidade. Ainda que essa questão já tenha surgido para mim, se alguém me disser que o meu mundo (ou nosso) não é exatamente do jeito que eu o vejo, teria que me dar uma explicação muito convincente para eu, talvez, acreditar.

Não é só por teimosia não, mas acreditar numa outra realidade é, ao mesmo tempo, destruir a verdade da realidade que eu possuía antes, e como eu faço parte da minha realidade, é também fazer e deixar morrer uma parte de mim para que outra nasça em seu lugar (porque não consigo que duas realidades diferentes ocupem, em mim, um mesmo lugar).

Mas temos mesmo de nos ocupar pensando o que é a verdadeira realidade? Não basta saber como as coisas funcionam? Essa pergunta traz para o centro de nossas divagações, o questão do 'uso das coisas'. De um modo geral, todo conhecimento é produzido para que possamos “usar algo” como instrumento para conseguirmos determinado resultado. O conhecimento, no mais das vezes, contém essa representação: “se buscas o objetivo (mediato) x, faça y (imediato)”.

Se tudo é utilizado, o próprio conhecimento e a pessoa concreta também são utilizados para os objetivos. Mas os objetivos podem ser os mais variados e não se limitam aos que o conhecimento formalizou em si ou a pessoa pensou para si mesma. Enfim, o uso que fazemos do conhecimento objetivo é bastante diferenciado do que dele decorreria “naturalmente” e as motivações, circunstâncias e interesses que condicionam o uso do conhecimento o fazem significativamente autônomo e diferente do conhecimento em si.

Enquanto a pessoa não alcança um resultado satisfatório para um problema formulado (necessidade cognitiva), para a fome sentida (necessidade fisiológica) ou para uma relação amorosa (necessidade afetiva), ela permanece impaciente, irresignada, incontida, ativa, buscando saber como aquele mundo poderia ser entendido de forma a se extrair dele a realização dos objetivos.

O presente trabalho se opõe à concepção tradicional de conhecimento que em vez de reconhecer a importância das diversas dimensões humanas, as hierarquiza tendo por cume a razão, estrato inferior a vontade, e subordinadas todas as demais faculdades. O mundo da vida e as necessidades humanas estariam na base da pirâmide, sobrepondo-se a eles a sensação, a percepção e a ação, e por cima dessas por sua vez a pessoa humana como conjunto, como todo, sendo que por sobre essa a vontade, da qual nada que se realiza se faz sem aquela e determinando toda a dinâmica de 'ser' humano, está, pura, a razão.

A falha nesse esquema hierárquico de determinação ou faculdades, seria algo em desacordo com um ideal humano atingível por todos e, portanto, uma conduta passível de ser “curada” por um tratamento médico, “expiada” por um ato religioso ou “retribuída” por uma sanção jurídica. Sobre isso, uma história:



Armindo é engenheiro-chefe em uma construtora. Recebeu de sua mãe uma educação cristã e de seu pai um solidificado espírito científico. Em seu aniversário de 38 anos, enquanto abraça sua namorada Ana, navegou no pacífico mar de memória infantil.

Lembra-se de como era uma criança alegre que, guiada por suas necessidades, desbravava corajosamente o mundo da vida que lhe cercava. Claro que para isso precisava aprender a sentir, perceber e agir como se fazia e era esperado que se fizesse em sua pequena cidade natal no interior de Minas Gerais. Mas não, não era um robozinho repetidor da cultura de seu mundo cada vez mais de horizontes estreitos.

Como homem aprendeu a dominar-se por meio de sua férrea vontade que sobre todas suas contradições se impunha e sobre essa só havia mais uma coisa, mas sobre essa última mais nada, nem mesmo Deus que emprestou de sua mãe até a adolescência. A razão não apenas reinava absoluta no ápice do seu edifício cultural, era também o fundamento primeiro e a moldura estrutural de tudo o mais do que se fizera.

Foi essa a exclusiva e esmagadora lição de seu pai: a razão guiando a vontade, a vontade dirigindo a ação e o sentir e o contato com o mundo e o reconhecimento de suas necessidades era assim ordenado racionalmente ao que deveria fazer. Subitamente emerge Armindo no presente e percebe Ana próxima sentada na poltrona e lendo uma revista de arquitetura e decoração.

Algo estranho em seu semblante. Enfado? Armindo não consegue manter sua atenção por tempo suficiente para descobrir; novo mergulho, desta feita ao momento mais marcante de sua adolescência. Quando aos 16 anos decidiu ser palhaço de circo e comunicou a seus pais, lhe pareceu que o mundo estava em guerra. Não tinha um só dia de paz para viver sua nova vida que ele mesmo se concedeu escolher.

Diziam seus pais que ele queria envergonhar a família e passar vivendo a custa dos velhos pois que não ganharia nada. Mesmo sua mãe, que de um modo geral o apoiava, viu naquele comportamento um ato de força do demônio que havia tomado seu filho já que esse fraquejava na prática da fé. Deveria consagrar-se a Deus para expiar em subversão que estava a fazer dos valores familiares cristãos.

Mas isso era pouco comparado aos ataques que seu pai comandava. Para Goulart, o pai, essa coisa de o filho querer abandonar uma vida responsável, em nome das “emoções” só poderia ser algum tipo de doença. Pensou ele que a dita evolução constante e a olhos vistos de seu filho, era só aparência, e o que ocorrida de fato era uma falha, uma espécie de doença do pensamento ou da razão que deveria ser curada com o pensamento correto, o famoso “colocar as idéias no lugar”, que colocasse as finalidades pessoais de Armindo na hierarquia anterior, verdadeira, da qual se desviou.

Goulart lembrou também as sanções econômicas, se virar sozinho e até ser deserdado, que estariam associadas como consequências de quem viola o valor e a verdade do domínio da razão sobre si mesmo. Armindo teve novo sobressalto, Ana agora dorme na poltrona, sua respiração tem a cadência de uma ordem imutável. Pensa que a cada prédio que constrói hoje, está em seu íntimo a dizer-se a si próprio que, se as etapas da evolução da construção de uma pessoa ou prédio não são suprimidas, ao menos as “mais baixas”, dentre elas as emoções, devem se ordenar e guiar pelas mais altas e, ao fim, todas as coisas humanas, pela razão.

Armindo olha para Ana, suspensa no sono; sim, é a mulher que ele ama e não, seu método racional de ação não tem funcionado bem para a relação de ambos. As suas emoções que ele permitiu que fossem suprimidas pela sociedade, agora fazem falta. Essa dor pede um amortecimento... uma ideologia para seguir? Um bom uísque para beber?



Ainda que o homem parta de suas dimensões e realidades fisiológicas e anatômicas, ele as transcende. Transcende nas mais variadas realizações da cultura, como a filosofia, a arte, a ciência, a religião etc. Se o homem extrapola a parte visível, física, do mundo, não quer dizer contudo que dela ganhe total autonomia, pois está ancorado a sua objetividade interna (seu corpo) e à objetividade externa (do mundo). Ainda que perambule pelo mundo, dele e nele está incrustado.

A realidade também pode ser compreendida através de outra distinção tripartida. No primeiro momento encontramos o 'próprio', que é aquilo que é 'meu', meu corpo, meu espaço e os objetos que me pertencem. Do lado oposto temos aquilo que não é meu, aquilo que é de outro, que não posso alcançar fisicamente ou conhecer – é o 'alheio'. Por fim, entre aquilo que é estritamente meu e exclui todos as demais pessoas como realidades subjetivas de igual dignidade, e aquilo que me é alheio e me exclui totalmente como realidade própria, está o que é 'comum' a ambas as existências.

Quanto ao tempo, vivemos tão naturalmente nele quanto respiramos o ar, mas nem por isso o entendemos. Todavia uma melhor compreensão das relações entre presente, passado e futuro, de sua continuidade e de que ele (o tempo) faz parte de nós, nos auxilia a entender os acontecimentos a nossa volta.

Há muitas formas úteis de estudar o tempo. Um engenheiro numa linha de produção de uma fábrica, um físico em seu laboratório e um escritor em seu romance ou roteiro de cinema, cada um em sua obra estuda e utiliza 'o tempo' de uma determinada maneira. Já para a pessoa comum, eu e você, que enfrenta seus problemas do dia-a-dia no mundo da vida, a melhor forma de entender a vida e o próprio tempo que se respira (lembre-se que é sútil como o ar...) é através da idéia de jornada.

Toda jornada tem um começo, um início, um princípio que é a sua origem. Algumas vezes esse ponto é bem demarcado – como a cerimônia do casamento – outras vezes nem se percebe – com um sentimento que lentamente vai se formando em nós sem que saibamos quando ele começou (só percebemos quando ele “estoura”). Mas a cada partida, quando se põe a caminhar, o viajante já abandonou a origem e agora encontra-se no meio do caminho, trilhando o que se diz que é a jornada propriamente dita, no tempo presente.

Por vezes, observando-se de fora o viajante da jornada da vida (todos nós o somos), andando em seu caminho, pode nos parecer que ele está caminhando sem uma finalidade, um destino específico. Ledo engano. O “empurrar com a barriga” é um modo de se fazer a caminhada, mas sempre haverá uma intenção naquele caminhar, naquele ato que fazemos ou naquele ato de não fazer. No mundo da vida – que é espaço e tempo concreto para a pessoa de carne e osso - não existe isso de você “não fazer nada”. Nesse sentido, a vida é como uma esteira de ginástica (que não desliga nunca), mesmo que seja para ficar no mesmo lugar, você tem de agir.

E sempre que se está caminhando e agindo há nisso uma intenção, uma direção. É essa intenção que aponta, lá na frente um objeto, um resultado, um acontecimento, um lugar, enfim, qualquer coisa, a qual atribuímos a característica de ponto de chegada. Esse destino pode ser específico como atingir uma meta no trabalho ou geral como celebrar o conjunto da vida, como fazemos a cada ano comemorando nosso aniversário.

Aliás o aniversário é um bom momento para se refletir (desde que não atrapalhe a festa, claro!) sobre o tempo. Vejo que no passado, em minha origem está “o que eu era”, que no presente está “o que eu sou” e que do futuro acena para mim “o que eu posso-e-quero ser”. Medito também sobre a irreversibilidade do tempo, percebendo que não posso agir no passado e desfazer aquilo que está feito. Se eu tiver mais tempo de jornada, e observar as crianças presentes, pode me ocorrer que o novo sempre vem e que renegar isso não irá aliviar o medo que todos temos da morte.

Mas como estamos imersos no tempo não tem sentido falar dele como um objeto fora de nós “o tempo”. Fundamental é colocar a pessoa concreta como a realidade que se integra em conjunto com o tempo. Assim, para meditar sobre o passado, presente e futuro podemos nos utilizar das expressões de Eduardo Gianneti, “eu-agora” e “eu-depois”, as quais ele desenvolve como partes da própria pessoa que a habitam e disputam entre si, cada qual com “uma personalidade” marcada ou face do valor do agora, ou em face do valor do amanhã2. A essas duas categorias acrescento o “eu-antes”, representante da integração entre a pessoa concreta e o passado. Várias idéias podem ser desenvolvidas a partir dessa abordagem do tempo e da pessoa e não só a feita pelo autor citada ou a que fazemos abaixo.

O eu-antes é o pai, o criador e a origem. Desta ela guarda a memória, desta memória ele depurou compreensões e a partir dessas ele constrói explicações de como o seu mundo interno e externo funciona. Já o eu-agora é um pragmático voltado à ação, que para isso se funda nos dogmas que o eu-antes elaborou; o eu-agora se utiliza de tudo que tem a seu alcance para a sua ação e nesta ele consome a seu tempo e a si próprio. Por fim, no eu-depois habitam tanto a faculdade imaginativa quanto a fé, a crença e esperança que compõem as previsões que fazemos de como o mundo e as pessoas devem ou deveriam se comportar.

Pensar na relação direta entre cada um de nós e seu próprio tempo permite que vejamos uma realidade contigua entre eu e meu mundo, onde há correspondência entre minhas faculdades e minhas circunstâncias, ainda que as dimensões-faculdades temporais se excluam entre si. À dimensão do passado corresponde nossa faculdade de compreensão e explicação, porque no presente não há tempo e o futuro ainda não aconteceu. À dimensão do presente corresponde nossa faculdade de agir. Todas as minhas ações que deixam registro no mundo, ocorrem no agora. Já o futuro, é inatingível, pelo homem que está sempre no agora, a menos que seja pela faculdade de imaginação e pelas previsões (racionais ou místicas) que fazemos do que irá ocorrer. Enquanto estou imaginando, e crendo num certo futuro, não consigo agir ou entender em outros tempos. Enquanto ajo não posso compreender (estar no passado) embora eu sempre faça algo baseado em uma compreensão que eu já tenha tido.

Esquematicamente pense-se no tempo como um mecanismo com dois pêndulos. No eixo de cima, que os prende, está a idéia do atemporal, em torno da qual balançaria o fluxo do tempo. Um dos pêndulos é o futuro, o outro é o passado, a posição perpendicular dos pêndulos indica onde está o presente (no agora o movimento está em repouso)3.

Nessa “pendularidade” contínua (mas não necessariamente constante) do tempo; o que fazemos no passado, o movimento do passado, constrói o que vivemos no presente e o movimento que fazemos no presente constrói o futuro, já o futuro, por sua vez, a cada passar do tempo, torna-se presente e o presente, a cada passar de tempo se torna passado e o que fizemos no passado constrói o presente, e assim sucessivamente, num movimento temporal que só se encerra (é o que parece), para a pessoa de carne e osso, quando ela morre.

Nosso esquema do tempo tem então pelo menos duas diferenças significativas: 1) em vez de ser divido em três estratos (presente, passado e futuro) é divido em cinco (passado, passado-presente, passado-presente-futuro, futuro-presente e futuro); 2) A representação do tempo em vez de se fazer com uma linha reta que parte do ponto PA (passado) passando pelo ponto PRE (presente) e se encerrando no ponto FU (futuro), se faz por um mecanismo que possui dois pêndulos, um representando o passado e o outro o futuro, que se movem independentemente, tendo por eixo fixo um ponto atemporal, cuja linha perpendicular representa o presente. Conforme a figura abaixo:

































A rigor são duas idéias com relativa autonomia, a do tempo como pêndulos duplos e a do tempo dividido em cinco etapas. O funcionamento dos pêndulos já o vimos no que se costuma abordar como a circularidade, ou no caso, o movimento pendular do tempo. A circularidade do tempo traz a conclusão de que as coisas se tornam absolutamente iguais ao que já foram, o que a experiência da mutabilidade do mundo e a da individualidade da pessoa rejeitam. A linerialiedade, em contraponto, coloca uma superação completa do passado que nada diz do presente ou do futuro, o que também a experiência rejeita já que tanto um quanto outro são, pelo menos em parte, determinados por aquele, que portanto é e não apenas foi.

Em outra aproximação, o que é relevante no tempo dividido em cinco etapas são as duas etapas que acrescem: o passado-presente e o futuro-presente. Essas categorias se integram às três já tradicionais, que mantém suas características originais no novo conjunto.

O passado-presente é aquele passado que ainda não está tão distante (significativamente e não em quantidade) a ponto de deixar de influir (ou de que deixemos de perceber sua influência) no realizar presente pelo qual vou transformando o que era de outro jeito (ou repetindo o que já era). Ele faz uma ponte entre duas realidades que se relacionam e concretiza que é o que fazemos no passado que realiza o que temos no presente, para que não pensemos que esse presente tem toda a autonomia que imaginamos quando o concebemos isolado de sua origem.

O futuro-presente, reflexamente, é aquele futuro que já não está tão distante a ponto de deixar de influir em nossas ações imediatamente realizadas no presente, pelas quais vamos transformando o conteúdo de nossas previsões de mundo, em realizações de mundo. Se pela imaginação ou pela memória podemos nos lançar, longe, num passado ou futuro autônomos, ao nos aproximarmos, como pessoas concretas, do presente, que enfeixa nossas diversas faculdades, essas categorias se fundem e produzem um ato/estado único, cujos fundamentos são marcados pela sua origem e cujas finalidades são orientadas para o futuro. Esquecer de onde viemos e não saber para onde vamos, torna o nosso presente ineficiente, cansativo e enfadonho ao mesmo tempo.

A criação apaga a existência de uma passado que se integra ao presente, de um criador que permanece parte da criatura (a sua importante origem); ela concebe o tempo como fragmentos que se justapõe apenas. Já a transformação (não aquela falsa que é na verdade uma criação ao mostrar a “transformação” de “matéria morta”4 em uma criatura viva) mostra a continuidade do fluxo do tempo e do espaço que realiza o significado da vida, colocando as existências em elos entre si e com o todo (não necessariamente causais) que lhes devolvem a realidade de um ser-aí5 no mundo.

Assim, depois de tudo, é chegado o tempo de falar do espaço e do que representamos espacialmente; e embora abordemos o tempo e o espaço em separado, fenomenologicamente (na prática, no mundo de verdade e na lógica de ambos) se trata de uma única realidade, o espaço-tempo, como nos convenceu Albert Einstein com sua teoria da relatividade.

O que desejo provar nesse momento é que duas coisas diferentes podem ser verdade, cada uma por si, simultaneamente, ainda que tratem parcialmente do mesmo objeto ou realidade. Quero provar que a existência de alguém ou de alguma coisa, por si só, já lhe coloca como uma realidade e como uma verdade em si (embora a verdade em si não seja a verdade toda, mas uma parte). Mas façamos o trajeto completo.

Partamos de um todo originário que, antes de todas as divisões, fosse tudo. É quase impossível pensar algo mais sobre esse todo sem que se comece a analisá-lo, a fracioná-lo. Só podemos pensar o todo como uma unidade, ou como a unidade. Se o todo é aquilo não dividido, para as religiões esse todo é Deus, para as ciências evolucionistas esse todo foi a cadeia (evolutiva) da vida – A Natureza (para ficarmos nas considerações de nosso planeta) - que culmina com o homem, antes de se apresentarem novos todos pela especialização e avanços que o colocaram física, química e biologicamente para além e para aquém da observação do homem não-cientista.

Mas para não nos perdermos na profusão atual de respostas científicas inconciliáveis sobre o que é o todo que constitui a realidade última e a verdade absoluta (inquestionável no presente embora se admita que no futuro possa se apresentar em uma nova forma) vamos ficar no meio do caminho com o animal humano que evoluiu dos macacos e desenvolveu faculdades e características exclusivas.

Podemos tomar aqui um interessante ponto de interseção da explicação religiosa da origem e criação do homem e da explicação científica da biologia evolucionista; embora elas discordem na maior parte dos aspectos, ambas concordam numa verdade fundamental: antes de o homem assumir-se como tal, ele pertencia a um todo (Deus ou a Natureza) no qual mal se diferenciava. Pensemos assim: se Deus e a Natureza existiam por si, antes e independentes do homem, eles constituíam uma verdade, uma realidade e um todo, cada um em si; era a unidade unívoca indiferenciada.

Se num segundo momento, o homem entra no cenário, mas ainda integra o reino daquela totalidade da qual ele não tem consciência como parte, ainda se trata de uma unidade, mas agora já plurívoca porque focaliza a existência de uma parte componente daquele todo ainda não fragmentado; o homem ainda é mais um animal da realidade natural ou mais uma criação da realidade divina. Mas em algum momento o homem “acorda” e a cisão original acontece. Esse momento é bem definido religiosamente com o pecado de terem Adão e Eva comido o fruto da Árvore do Conhecimento e tomado consciência de sua nudez; já na ciência – que apela menos ao dogma – essa resposta está sempre em aberto.

O certo é que para as cosmogonias em geral (explicações completas da origem do mundo) havia no início um todo e desse todo houve uma cisão original e essencial: a criatura se afastou do criador, a parte se tornou independente, de alguma forma, do todo primordial ao qual pertencia. Temos a primeira cisão todo-parte, entre o homem e sua origem, a qual precederá a todas as demais. É sobre o afastamento e a aproximação entre a realidade da pessoa de carne e osso e a verdade de Deus que se debruçam todas as religiões; é sobre a verdade do homo sapiens e a realidade física, química e biológica que se inclina toda a ciência.

Dessa primeira divisão que atingiu a unidade e a distinguiu entre um todo e partes, entre a origem e a própria existência, entre criador e criatura, nascem todas as demais distinções de nosso conhecimento sem que possam – como partes – lhes negar o todo ao qual pertencem. A partir da primeira cisão, a pergunta primordial não deixou mais de ser feita: qual a verdade, ou, qual a realidade; a do todo ou a da parte? A partir daí chocam-se no homem a verdade do que é interno a si e do que lhe é externo; e ainda que a demarcação do “interno a si” varie, essa divisão funda o paradigma, por nós ainda realizado, da separação entre sujeito e objeto.

Essa disputa entre a verdade da parte e a verdade do todo pode se apresentar nos binômios opostos mais variados, como entre a “alma” e o “corpo” ou entre a “alma” e a “mente” ou entre o “corpo” e a “alma”, ou ainda o “corpo” e a “mente” ou o “corpo” e o “mundo”. Já a divisão entre sociedade e natureza fundou parte significativa do conhecimento de nossa civilização e em relação ao método e outras características do conhecimento, outra cisão profunda prevalece hoje entre conhecimento científico e conhecimento vulgar (aquele dito do senso comum, que não é disciplinar).

Se o mundo natural era o todo, a sociedade foi dele separada como uma parte; se a religião – quando não se distinguia do Estado - era o todo do homem em seus âmbitos públicos e privados, a moral foi dela separada como a parte ética do social; se a moral era o todo da ética o direito foi separado como parte específica na medida em que dela ganhou autonomia científica (formal) e social (substancial) em relação à moral.

Vivemos hoje, após tantas divisões, em uma realidade muito fragmentada, onde o oráculo – Google - (que representa a sabedoria; sendo esta por sua vez um conhecimento do todo) é uma imensa máquina de calcular que localiza o fragmento procurado através de fórmulas e cálculos matemáticos. Podemos facilmente perceber que essa fragmentação do mundo da vida aumenta em compasso com a expansão do conhecimento, o que nos faz concluir que ela só tende a crescer.

Dessa forma cresce também a fragmentação da pessoa, porque o mundo da vida é uma dimensão da pessoa que somos e “eu sou eu e minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset), e é por essa faceta física, espacial e temporal da pessoa de carne e osso que iniciamos nosso estudo das perguntinhas irrespondíveis: “quem somos nós?”, “de onde viemos?”, “para onde vamos?” e “qual é a verdade?” ou, numa formulação mais moderna: “como funciono eu e o meu mundo?”, “quais as minhas forças e fraquezas inatas?”, “o que necessito e como faço para ser feliz?” e “quais as certezas nas quais devo me apoiar para viver?”.

Ao lado dessas perguntas relativas ao todo, estão as partes variadas, e entre ambos se estabelece a tensão entre todo e parte, a qual mantém pressuposta a questão de qual é a “verdadeira verdade” entre essas duas realidades distintas e aparentemente excludentes. Quando entramos numa discussão e agimos como “donos da verdade” que excluem a verdade um do outro, estamos pensando em verdades, realidades que se comportam como objetos físicos de igual natureza

se parecem de igual tamanho, finalidade, origem, funcionamento, fundamentos etc. A partir do momento em que lhe reconhecemos, sem destruir, suas diferenças, é possível que iniciemos um processo de aceitação mútua e simultânea das duas verdades.

Da idéia de que a verdade, tal qual um objeto da realidade física, ocupa um determinado espaço, decorre que esse espaço (assunto) não possa ser ocupado ao mesmo tempo por outra verdade, ou seja, só pode haver uma verdade, uma realidade. Ou, de outro modo, para todas as teorias de origem da vida que encontram ordem no início do universo, a busca da unidade, da verdade definitiva e da realidade total, é a tentativa de se retornar, de se religar à origem que foi abandonada; tentativa essa que possivelmente se dá no meio do caminho, sem se completar a jornada que exige que

Falamos tanto do todo e da parte porque essas são duas realidades que se superpõe simultaneamente sem que nos ocorra imediatamente que isso é impossível, pois sabemos que a realidade das partes não exclui a verdade do todo. Para essa compreensão, todavia, não é útil a metáfora da máquina porque, nela, não verificamos um todo que não seja a exata correspondência da soma da verdade de cada uma das partes.

A metáfora do computador máquina quase seria suficiente para nós porque: a) admite duas realidades distintas, sendo que cada uma é uma verdade em si sem que se questione a verdade da outra ; b) ambas têm mediatamente (ao final) a mesma função (a preservação e o desenvolvimento humano) e, imediatamente, funções diferentes (o indivíduo o dever de individuar-se, a sociedade o dever de organizar-se); c) a autoregulação (do funcionamento interno) da parte “convive” com a heteroregulação do conjunto (as influências do todo e das outras partes).

É numa sociedade democrática, livre e fraterna que encontramos a metáfora adequada para o homem plural. Ela é um composto de realidades diversas – totalmente verdadeiras em si e parcialmente verdadeiras como partes de um todo maior - que ilustra as verdades simultâneas de todo e partes, como níveis de existência diferentes, até antagônicos, mas ambos verdadeiros sem que a realidade de um exclua a do outro. Não se negam os indivíduos como as partes componentes da sociedade, não se nega a sociedade como o todo no qual a parte pode se realizar, simultaneamente, para si e para os outros.

O todo e as partes podem ser ilustrados didaticamente com a sociedade e os indivíduos que a compõem. Nesse caso, para começar, ninguém nega a existência de algum deles. Tampouco se tem tentado entender a sociedade pela simples soma da realidade individual de cada um, sabe-se enfim que a realidade do todo transcende as das partes, não importando se a ênfase é na soma das partes (crença é comunitária) ou na subtração das partes (crença liberal); porque realmente ocorre uma ambivalência da parte e do todo, cada um valendo, para si e para o outro, simultaneamente.

A parte e o todo são realidades diferentes sobre o mesmo objeto, sujeito ou assunto, mas são ambas verdadeiras em si (existem daquele modo), ou seja, formam um todo próprio e completo, até que uma delas seja pensada em relação a outra coisa, quando então a primeira verdade, que era total e única, passa a ser parcial (da parte) e plural, mas tratando sobre a mesma coisa haverão duas realidades distintas, ambas verdadeiras. Por exemplo, no direito, o que é uma verdade total, atestada e completa, “a realidade dos fatos”, para uma parte, é apenas um argumento (verdade parcial, provisória) para a outra; e as duas verdades antagonistas convivem num processo dialético que, por se orientar à ação prática6, sente-se obrigado a reduzir a pluralidade de verdades parciais à uma única.

Boa parte das coisas que pensamos hoje em dia está imersa no paradigma da separação entre sujeito e objeto, como verdade que se excluem. A proposta desse livro é que se tratam de verdades e realidades (tratamos ambos como sinônimos pois esse sentido mútuo aparece quando percebemos que eles se explicam um pelo outro) que existem como um todo completo, cada uma para si, mas ambas como parte de uma realidade maior, que as compreende mas não absorve, embora adicione a sua autonomia uma novas influências do novo fenômeno, o qual elas passam a integrar.

Não existe objeto que não tenha sido observado ou pensado. Essa observação ou pensamento forma-se e guarda-se junto com outras observações e pensamentos (são partes portanto) produzidos pela observação e pelo raciocínio, sendo ambos partes de pessoa concreta.

Assim, o objeto é sempre parte na relação da pessoa com ele, embora ele objetivamente, visto por um “observador neutro” poderia mostrar-se maior, como uma instituição ou a sociedade ao qual aquela pessoa pertence. Numa perspectiva empírica, nem mesmo o mundo da vida ou Deus contém a pessoa; só uma pessoa de carne e osso pode conter a si mesma em toda a sua extensão, profundidade, potencial, responsabilidade e poder.

O sujeito é, enfim, o todo perante o qual o objeto, como parte, se apresenta concretamente. Se sujeito e objeto não tem a mesma natureza, não há porque discutir qual prevalece, pois prevalecerá cada qual em suas funções e de acordo com sua natureza, o todo dando significado e funcionalidade às partes, as partes dando subsistência e estrutura ao todo. Isso nos permitirá uma releitura do paradigma do sujeito x objeto.

Para si, cada realidade, cada existência é um todo, embora possa ser analisada, internamente, em partes. Para outra realidade, contudo, cada existência é uma parte de um fenômeno maior que inclui as diversas partes que se relacionam e se definem entre si, em cooperação antagônica entre a autoregulação de cada uma das partes e a heteroregulação indireta do todo. Pense-se no homem em sociedade e se percebe que fora os poucos casos em que ele é fisicamente coagido em seu corpo para que esse se comporte na exata medida daquela força, em todos os outros casos é necessário que a norma, a influência e a persuasão externas sejam assimiladas pelo funcionamento interno de uma tal forma que esse produza naquela parte o que o todo pretendeu. Entre a ação do todo e a reação concreta da parte, intervém como ela compreende, elabora e executa a resposta, portanto a a heteroregulação é indireta.











1Se o conhecimento e a tecnologia me permitem ir em algum 'lá' enquanto meu corpo permanece 'aqui' algum tipo de complicação haverá de existir... Pode ser que a minha pessoa concreta tenha tido seu 'aqui' expandido até 'lá', pode ser que as distâncias tenho diminuído (como enfatizam as companhias telefônicas e aéreas).

2“O conflito subjacente a todas essas situações opõe dois personagens que disputam pelo poder na assembléia intrapessoal de cada um. O primeiro deles é o eu-agora: um jovem entusiasta, frequentemente inebriado de desejo, sempre disposto a desfrutar o que o momento pode oferecer de melhor, generoso sem dúvida, mas com a vista curta e forte inclinação a descontar pesadamente o futuro. O bem imediato é a sua razão de ser. Do outro lado, ..., o eu-depois: um adulto desconfiado, frequentemente avinagrado de preocupações, sempre com um olho na própria saúde e no carnê da previdência, cioso do seu horizonte profissional, cauteloso em meio a um mar de dúvidas, mas capaz de enxergar um pouco mais longe que o eu-agora, ainda que ao custo de muitas vezes descontar pesadamente o presente. O bem remoto é o seu único foco.... A arte da convivência interna está ligada à busca de alguma forma de equilíbrio estável entre essas duas forças”. GIANNETTI, Eduardo. Auto-engano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 181/183.

3Outra representação seria um dos pêndulos como o do tempo-interno-subjetivo e o outro como o do tempo-externo-objetivo. Embora essa alegoria sirva ao desenvolvimento de algumas questões, não adotamos a divisão interno-externo como fundamental neste texto porque ela pertence historicamente aos que propõem uma inconciliável distinção entre sujeito e objeto.

4 No caso da criação de Adão havia apenas o barro e o sopro de Deus criou o homem com o que – para a experiência humana do que lia o mito - se criavam apenas vasos e outro utensílios inertes. No romance onde o monstro de Frankstein é criado, a idéia é a mesma.

5O conceito é do filósofo Martin Heidegger.

6O mesmo não ocorre com a compreensão e o conhecimento, que admitem a pluralidade.

quinta-feira, 26 de março de 2009

A sociedade das ideias

As ideias em nós vivem como nós vivemos em nossa sociedade. Cada ideia tem o seu espaço, a sua função, as ideias afins e as que rejeita. entre as ideias há casos de paixão e casos de ódio. há casos de brigas que se arrastam geração após geração entre clãs de ideias rivais. Ideias "mais importantes" organizam e determinam o destino das outras. Mas cada uma em si guarda um sentido que não pode ser reduzido a suas relações com as demais.